Além dos esforços enredados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho em resgatar pessoas vítimas do chamado trabalho escravo, uma chaga que teima existir, em pleno século XXI, têm que enfrentar no cotidiano os ataques advindos dos que advogam esse escárnio, muitas das vezes pagando com a própria vida – caso Chacina de Unaí, como lembra a Auditora-Fiscal Trabalho Cláudia Márcia Ribeiro, em entrevista especial pra esta edição. Entre as linhas da sua entrevista Cláudia Ribeiro diz: “Ao encontrarmos trabalhadores escravizados temos a oportunidade de presenciar o quanto o ser humano pode ser cruel, pois, levado geralmente pela ganância submete pessoas a situações de desrespeito não só aos direitos trabalhistas, mas, também a dignidade do ser humano”. ATENTE ! para suas genuínas reflexões. Boa leitura.
Vamos iniciar esta entrevista pedindo que fale um pouco da sua trajetória como Auditora-Fiscal do Trabalho, atuação no movimento sindical da categoria, vida acadêmica, enfim, fique à vontade.
CLÁUDIA MÁRCIA RIBEIRO — Fiz o curso de Direito na UFPI, entrei no Ministério do Trabalho através de concurso, em 1984. Sempre tive sensibilidade e compromisso com as causas sociais, sempre tive um olhar voltado para as causas dos trabalhadores. Como Auditora-Fiscal pude desenvolver esse lado tão presente na minha vida.
Tive sempre uma ligação muito forte com o movimento sindical no Piauí e logo ao começar a trabalhar me filiei a Associação dos Fiscais do Trabalho, AITEPI, que tinha à época como Presidente uma colega muito combativa, Maria do Socorro Monte, a quem presto as minhas homenagens. O SINAIT ainda não havia sido criado, lembrando que estávamos em 1984 em plena ditadura. Logo que a Constituição de 1988 foi promulgada, o SINAIT foi o primeiro Sindicato de trabalhadores públicos civis a fazer o registro no MTE.
Como a senhora situa o SINAIT dentro desse contexto de ataques aos direitos da Auditoria Fiscal do Trabalho, bem como da classe trabalhadora em geral?
CMR — O SINAIT é um Sindicato que atua diuturnamente pelos direitos dos trabalhadores e da nossa categoria. Vivemos um momento onde os direitos dos trabalhadores foram retirados por quem tem obrigação de protegê-los: o Congresso Nacional. A CLT foi esfacelada, a Inspeção do Trabalho vem assistindo com muita preocupação, desde 2016, um contínuo desfazimento das leis protetoras dos trabalhadores, inclusive com a aprovação em 2017, da retirada de mais de 100 direitos da Consolidação das Leis do Trabalho CLT. Podemos afirmar que isso legalizou o trabalho precário, causando aos nossos trabalhadores, empregos sem direitos e com baixíssimos salários. Para completar o pacote, o próprio Ministério do Trabalho e Emprego foi extinto. O que estamos vendo? Quase 12 milhões de desempregados e quase 6 milhões de desalentados. Sabemos a importância do trabalho do Auditor-Fiscal e do nosso sindicato em prol da categoria e dos trabalhadores e sentimos na pele todos os dias que, o trabalho desenvolvido pelos Auditores-Fiscais do Trabalho e pelo SINAIT, enfrenta inúmeros e dramáticos desafios, e um dos mais prejudiciais aos AFT e aos trabalhadores é a falta de concurso público para a carreira de Auditoria-Fiscal do Trabalho, considerando que a carreira tem 45% de vacância nos cargos. Segundo dados do SINAIT, temos atualmente, apenas 2.015 Auditores-Fiscais do Trabalho na ativa, o menor quadro de Auditores-Fiscais dos últimos 25 anos.
Qual sua análise sobre as ações implementadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel durante o tempo que a senhora Coordenou as ações de fiscalização, in loco, em fazendas, carvoarias onde se tinham denúncias de trabalho escravo?
CMR — Após o reconhecimento da existência de trabalho escravo no Brasil pelo Ministro do Trabalho Walter Barelli, na Convenção da OIT em Genebra-Suíça, a Secretaria de Inspeção começou a desenhar o modelo e a executar ação pontuais nos moldes do que seria futuramente o Grupo Móvel a partir desse reconhecimento, decisão que considero um marco no combate ao Trabalho Escravo no Brasil, pois os Ministros anteriores sempre minimizaram ou mesmo negaram a existência de Trabalho Escravo no Brasil. Naquela época tínhamos um governo, um Ministro e uma Secretária, nossa brilhante colega Vera Jatobá, favoráveis ao enfrentamento dessa questão. Vale ressaltar que a 1ª ação de fiscalização nos moldes do que seria o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, (faz parte de um livro publicado pela Anti-Slavery – ONG internacional), aconteceu em 1993, foi uma fiscalização executada por uma equipe multidisciplinar, formada por Auditores Fiscais do Piauí e Maranhão. Entretanto, oficialmente o Grupo Móvel só foi criado em 1995, no governo Fernando Henrique sendo Ministro do Trabalho Paulo Paiva. O Grupo Móvel é fruto do trabalho da Auditoria-Fiscal, da inteligência privilegiada da Secretária de Fiscalização e Auditora Fiscal Ruth Vilela, (cena retratada no filme “Pureza”), e também do importante papel da sociedade civil organizada, ONGs e principalmente a Comissão Pastoral da Terra, que sempre denunciou e denuncia o Trabalho Escravo. O início não foi tão fácil, nós estabelecemos padrões de fiscalização, de libertação, que não eram contemplados claramente na CLT, então nos valemos do conjunto da legislação brasileira, e dos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. Ao encontrarmos trabalhadores escravizados temos a oportunidade de presenciar o quanto o ser humano pode ser cruel, pois, levado geralmente pela ganância submete pessoas a situações de desrespeito não só aos direitos trabalhistas, mas, também a dignidade do ser humano.
Em pleno século XXI, têm que enfrentar no cotidiano os ataques advindos dos que advogam esse escárnio, muitas das vezes pagando com a própria vida — caso Chacina de Unaí, como lembra a Auditora-Fiscal Trabalho Cláudia Márcia Ribeiro, em entrevista especial pra esta edição.
Qual o Estado que o Grupo Móvel primeiro atuou e qual o resultado advindo da ação dos AFT?
CMR — O Grupo Móvel não atuava somente em um Estado. No início eram 5 equipes que foram distribuídas por região. Os Estados que em razão das denúncias foram inicialmente mais fiscalizados: Pará, Mato Grosso e Maranhão.
Quais as dificuldades encontradas àquela época, e agora, no sentido de impedir a atuação dos AFT para resgatar trabalhadores em condições de escravo?
CMR — O Grupo Especial de Fiscalização Móvel ao ser criado recebeu o apoio do Estado. Isso foi essencial para o nosso trabalho. As equipes eram formadas por AFT de Estados diversos e não do Estado onde ocorreria a fiscalização, isso para proteger os AFT de retaliações no seu próprio Estado.
Os resultados eram visíveis. Atualmente, para exercer a sua função os AFT enfrentam muitas dificuldades. Podemos citar inicialmente, o contingenciamento orçamentário, que limita as ações. Todos os anos o orçamento da fiscalização é cortado e o trabalho da fiscalização de modo geral é extremamente prejudicado. Outra grande dificuldade com que nos deparamos é a falta de concurso público para a carreira de Auditor-Fiscal do Trabalho, cujo número de Auditores é insuficiente, estando na ativa apenas 2.015 Auditores-Fiscais do Trabalho. Entretanto, mesmo com tantos obstáculos, a Inspeção do Trabalho continua apresentando números de excelência, como os apresentados em janeiro deste ano, nas áreas de recolhimento de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e de combate ao trabalho análogo ao de escravo.
Quando o trabalho escravo começou a ser combatido no Brasil?
CMR — Oficialmente em 1995, mas em 1971, em plena ditadura, Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia-MT, denunciou a existência de trabalho escravo na Amazônia.
E quantos trabalhadores desde então foram resgatados pela ação dos Auditores-Fiscais do Trabalho?
CMR — Mais de 57 mil trabalhadores que se encontravam em condições análogas às de escravos.
O que não significa que esse crime tenha deixado existir em nosso país?
CMR — Infelizmente não. Enquanto o Estado não priorizar a educação, saúde e segurança do povo brasileiro essa chaga não vai acabar. Enquanto o povo brasileiro constar dos altos índices de pobreza, não vai acabar. Enquanto os brasileiros não tiverem oportunidade de trabalhar, enquanto estiverem vulneráveis as falsas promessas, enquanto as desigualdades sociais, o baixo nível de escolaridade existir, o trabalho análogo ao escravo não deixará de existir. Vale destacar que o Trabalho Escravo, muito associado à área rural, cresceu muito, também, nas áreas urbanas. No Fórum Social Mundial realizado de 26 a 30 de abril deste ano em Porto Alegre/RS, foram lançados pelo SINAIT os livros “Resgates” onde vários Auditores-Fiscais contam a história do Grupo Móvel desde o início, e Trabalho Escravo na Indústria da Moda no Brasil, onde está relatado os 10 anos de atuação dos Auditores-Fiscais de São Paulo no combate ao Trabalho Escravo na área urbana, organizado pela Auditora-Fiscal do Trabalho Lívia Ferreira e pelo Auditor-Fiscal do Trabalho Renato Bignami
Sobre o conceito de trabalho escravo versus trabalho análogo à escravidão, qual sua opinião?
CMR — O Trabalho Escravo foi formalmente abolido no Brasil em 1888, o que não significa ter sido abolido na prática. Tendo em vista a abolição da escravatura em 1888, a expressão correta e utilizada com precisão no nosso Código Penal no seu artigo 149 é “Trabalho Análogo ao Escravo.”
O que pode nos dizer sobre a Chacina de Unaí?
CMR — A Chacina de Unaí foi um crime que ocorreu em 28 de janeiro de 2004, em que, vítimas de emboscada, foram assassinados os AFT Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira. O crime ficou conhecido como Chacina de Unaí, em referência à localidade onde ocorreram os homicídios. Após 18 anos de luta do SINAIT para que a justiça seja feita e os criminosos cumpram suas penas, a Justiça Federal de Belo Horizonte marcou para o dia 24 de maio próximo, o novo julgamento do fazendeiro Antério Mânica, acusado e já condenado anteriormente, por ser um dos mandantes dos assassinatos. O dia 28 de janeiro, dia do bárbaro assassinato dos AFT e do motorista, foi reconhecido como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e Dia do Auditor-Fiscal do Trabalho, a data é uma homenagem aos três Auditores-Fiscais do Trabalho e ao motorista do Ministério do Trabalho brutalmente assassinados, há 18 anos. Este é apenas um resumo da saga das famílias dos colegas e do SINAIT para que a justiça seja feita e acabe com 18 anos de impunidade.
Recentemente, o SINAIT levou o filme Pureza ao Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, em Porto Alegre/RS. O que pode nos dizer sobre esse filme?
CMR — Considero importantíssima a divulgação do combate ao Trabalho Escravo. O filme “Pureza” retrata uma história verdadeira, de uma mãe a procura do seu filho que saiu para trabalhar no sul do Pará e não retornou. Essa é uma história que acontece diariamente. O filme já ganhou vários prêmios em participação de vários festivais. É extremamente necessário que o combate a esse crime seja divulgado e conhecido por toda a sociedade.
Quando, onde e como foi seu primeiro contato com Dona Pureza Lopes Loyola?
CMR — Conhecemos D. Pureza no início da Móvel, acredito que em 1996, a Secretaria de Fiscalização recebeu do Ministério Público Federal um pedido de fiscalização, baseado num procedimento aberto por aquele órgão, em razão de denúncia de D. Pureza, fui então designada, juntamente com o AFT Sérgio Carvalho, para nos deslocarmos a Bacabal-MA, para encontrar D. Pureza e apurar a denúncia. Vale destacar que quando encontramos D. Pureza o seu filho, Abel, já havia retornado a Bacabal. Na oportunidade estivemos com D. Pureza e Abel. D. Pureza na ocasião, nos recebeu com muito carinho, conversamos bastante, ela contou toda a sua luta para encontrar o seu filho Abel. No mais, sugiro a todos(as) que assistam Pureza, provavelmente estará em cartaz nos cinemas de Teresina, nos shoppings centers.
Essa é uma história que acontece diariamente. O filme já ganhou vários prêmios em participação de vários festivais.
É extremamente necessário que o combate a esse crime seja divulgado e conhecido por toda a sociedade.