CARLOS Mascarenhas
Jornalista e Poeta
Mestranda em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Ana Beatriz de Araújo Freitas volta seu olhar para um tema segundo explica – muito caro para a sociedade contemporânea, que é pensar o lugar social de mulheres e homens, desconstruindo as hierarquias sociais baseadas e construídas a partir das diferenças sexuais, fenômeno que aborda com toda sua paixão na sua pesquisa Enlaces matrimoniais e desquites: casamentos e relações de gênero em processos judiciais em Parnaíba-PI nas décadas de 1960 e 1970, no Fórum Salmón Lustosa.
Feminista assumida, Ana Beatriz na entrevista abaixo, feita por e-mail, ao constatar a situação da mulher vítima de assédio e violência, num gesto de convocação diz: “Infelizmente, na atual conjuntura política do Brasil, há sim o que temer. Criar coragem e denunciar é o primeiro passo. Entendo que quase sempre isso não é possível. Mas, seguimos. Precisamos nos unir!”.
Atente para suas genuínas reflexões. BOA LEITURA !
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Vamos iniciar esta entrevista pedindo que fale um pouco da sua trajetória – estudantil, sindical, acadêmica… Fique à vontade.
ANA BEATRIZ ARAÚJO DE FREITAS — Então, sou formada em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). No momento estou finalizando o mestrado na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), também em História. Participo, aqui em Parnaíba, do Coletivo Feminista Mulheres em Pauta e recentemente me filiei ao PSOL, fazendo parte do Diretório do partido.
O que pode nos dizer sobre sua pesquisa de mestrado – Enlaces matrimoniais e desquites: casamentos e relações de gênero em processos judiciais em Parnaíba-PI nas décadas de 1960 e 1970?
ABAF — Sou assumidamente apaixonada por minha pesquisa. Sempre que me volto para pensar a respeito, me deparo com coisas novas – o que claramente se liga ao fato de a pesquisa ser essa coisa que nunca acaba, só tem início mesmo. Mas considero meu trabalho muito relevante do ponto de vista de ser um tema muito caro para a sociedade contemporânea, que é pensar o lugar social de mulheres e homens, desconstruindo as hierarquias sociais baseadas e construídas a partir das diferenças sexuais.
O que a motivou trabalhar esse tema?
ABAF — Antes mesmo de adentrar a universidade, já acompanhava os debates acerca dos feminismos e dos debates de gênero – isso mesmo que timidamente. Na UESPI pude ter contato direto com as temáticas e foi paixão certeira. Daí, durante minha formação, fui me envolvendo com grupos de pesquisa, eventos e a produção bibliográfica a respeito. Na graduação trabalhei com gênero e imprensa. Quando estava perto de concluir comecei a ter acesso a fontes judiciais (processos de desquite), a convite de um professor muito querido, que hoje é um dos meus melhores amigos, o professor Erasmo Amorim. Na época, ele estava finalizando sua pesquisa de doutoramento pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sendo orientado por uma das maiores referências nacionais nas pesquisas de gênero, a professora Rachel Soihet. Minha aproximação com Erasmo me proporcionou experiências de pesquisa incríveis. A ele, toda minha gratidão.
Qual seu olhar sobre o tema gênero e imprensa?
ABAF — A imprensa, e sobre isso você pode opinar melhor, não se situa fora do mundo social ao falar dele, como nos ensina Maria Helena Capelato. Os jornais são poderosas ferramentas de transformação e manutenção da sociedade. Inclusive, isso é muito evidente hoje. Quando tratamos sobre a questão de gênero a partir do prisma histórico, percebemos que as mulheres quase sempre foram tema nesse veículo. Os homens adoram falar das mulheres. Como elas devem ser, se vestir e comportar. É válido lembrar que não obstante os manuais de conduta dos séculos XIX e XX criarem a imagem da “rainha do lar”, essa representação está muito distante das mulheres negras, pobres, periféricas, trabalhadoras, operárias… Pode não parecer, mas desconstruir isso ainda é um desafio, no qual me incluo. Não dá para colocar todo mundo no mesmo barco, porque afinal de contas, não estamos.
À luz da sua pesquisa, como analisa a instituição casamento, no que diz respeito ao desquite, descrito no Código Civil Brasileiro de 1916?
ABAF — O casamento é uma das instituições sociais mais importantes. No Brasil, a dissolução desse sacramento passa por um processo social intenso, recheado de controvérsias. A criação do termo “desquite” nada mais foi do que uma maneira de driblar a oposição oferecida pelo setor religioso. O desquite era, portanto, uma das formas de se “separar” sem se separar de fato. O que isso significava na prática? Simplesmente que você até poderia se desquitar, mas a lei não autorizava a formação de uma outra família. Porque a família, só uma. Aquela construída aos olhos de Deus. Assim, quaisquer relações fora dela eram consideradas ilegítimas (concubinato, por exemplo).
Com que autores(as) você trabalhou e que deu corpus ao seu estudo?
ABAF — Utilizei muitos trabalhos e tenho muitas referências. Como costumo dizer, gostaria de abraçar todos e todas. No entanto, destaco as pesquisas de Eni Mesquita de Samara, Ipojucan Dias Campos, Pierre Bourdieu, Keila Grinberg, Joan Scott e Michel Foucault.
Qual sua análise sobre as tensões/polêmicas entre a sociedade e a Igreja Católica sobre o Desquite versus Divórcio?
ABAF — A influência religiosa no ordenamento jurídico brasileiro não é segredo para ninguém. Esse fato é devedor daquilo que podemos chamar de colonialidade do poder, cuja explicação dada por Aníbal Quijano – para citar somente um autor, nos auxilia a perceber como determinadas estruturas sociais foram se constituindo no período colonial, como o patriarcado e o racismo. O Brasil é um país laico, lembremos. Mas a Lei do Divórcio é de 1977, portanto, uma conquista feminina muito recente. Por que feminina? Porque o casamento (heteronormativo) tem funcionado como uma espécie de prisão para as mulheres. É lá onde reina, nas palavras de Bourdieu, a dominação masculina. Assim, o fato de termos demorado tanto para autorizar o divórcio verdadeiramente só demonstra o quanto o pensamento cristão está arraigado nas leis (e antes disso, na moral das pessoas). O desquite só existiu porque a pressão da Igreja foi muito grande para que o divórcio não fosse instituído.
Como analisa a questão de gênero na sua pesquisa sobre as decisões judiciais no Fórum Salmón Lustosa em Parnaíba? Estatisticamente, quem mais pleiteava o desquite: o esposo ou esposa? E como era o cotidiano das famílias envolvidas nessa questão?
ABAF — Dentro de meu recorte temporal, as décadas de 1960 e 1970, analiso 48 processos judiciais de desquite, dos quais somente 10 foram ações movidas por mulheres. Ainda assim, defendo que essa participação tímida foi essencial na emancipação dessas pessoas. Afinal, deve-se ter em mente que Parnaíba nesse período não era, nem de perto, um grande centro urbano. Embora fosse a segunda maior e mais importante cidade do Estado do Piauí. Os homens procuraram se desquitar com maior frequência. A grande diferença entre as ações é a argumentação tecida pelos operadores do direito acerca dos papeis de gênero. Assim, a tal honra familiar estava diretamente ligada a honra da mulher (sua vida sexual), ao passo que a honra do homem só poderia estar resguardada se a sua esposa lhe fosse fiel. Os processos trazem cotidianos marcados por desafetos e em sua grande maioria, violência.
Na hierarquia familiar, juridicamente, de acordo com seu estudo, o patriarcado reinava sobre a “Rainha do lar”?
ABAF — O título de “rainha do lar” nada mais é do que uma falácia. Logo porque era algo completamente restrito as camadas sociais mais altas, o que não é o caso das mulheres dos processos que analiso. Válido lembrar também que, historicamente, a mulher “para casar” era a branca. Esse debate se inicia, inclusive, com a publicação de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Juridicamente, a esposa dentro do casamento estava restrita ao papel de objeto de seu marido. Era ele quem decidia se ela poderia trabalhar, por exemplo.
Qual a diferença entre desquite e divórcio? Considera este último uma vitória do feminismo?
ABAF — O desquite foi um artifício de Clóvis Beviláqua, redator do Código Civil de 1916. O desquite não autorizava novas núpcias, o divórcio instituído a partir de 1977, sim. Artifício que agradou parte da sociedade civil, incomodou setores religiosos mas que no fim conseguiu ser aceito. E por quê? Ora, porque estamos a falar de uma sociedade cujo projeto co-lonizador detinha em sua base os valores cristãos. Autorizar o divórcio seria deixar que a “perversão” tomasse conta da sociedade, afinal, ele era visto como o elemento que iria destruir não só o casamento, mas a família. Historicamente, nossa legislação é marcada por ideais machistas e misóginos. A pílula anticoncepcional, de 1961, o Estatuto da Mulher Casada, de 1962, e a aprovação da Lei do Divórcio, de 1977, são sim vitórias do feminismo e fazem parte de um amplo contexto de lutas por direitos humanos.
Como situa nesse lapso de tempo o Estatuto da Mulher, sua importância?
ABAF — O Estatuto da Mulher Casada (1962) foi importantíssimo para as mulheres casadas. Ele deu maior autonomia para elas, o que não aconteceu com o Código Civil de 1916. A mulher casada passou a ser considerada colaboradora dentro do lar, podendo trabalhar e ter maior autonomia sobre seu próprio corpo. É evidente que na prática, muitas já trabalhavam! O ponto-chave aqui é lembrar que o chamado trabalho informal não costumava entrar nas estatísticas. É por isso que há muitas tensões entre a teoria e a prática. O trabalho doméstico, destaco, a violência do marido muitas vezes é tomada como natural: é normal que assim fosse. Mas não é. A violência é um fenômeno social, e por ser social, ela é passível de mudança. A partir de 1970 podemos ver, em contexto nacional, uma mobilização pelo direito da mulher à vida. Isso mesmo. Direito de viver. De não ser morta porque o homem é ciumento. Basta lembrarmos do famoso slogan “quem ama não mata”.
Resumo da ópera: Como você situa seu estudo nesse debate de violência contra a mulher…, feminicídio tão em alta em nosso país, no Piauí? Que palavra/pensamento você pode deixar para as mulheres vítimas de violência do machismo?
ABAF — Estudos sobre violência de gênero têm se tornado bastante populares. Engana-se quem acha que devemos parar por aí porque as mulheres já alcançaram “direitos demais”. Não, não alcançamos. Isso por- que há uma diversidade de mulheres, as quais não contemplo em minha fala. Mulheres negras, trans, indígenas… Enfim. Quando você não é a regra, ocupar espaços acadêmicos se torna uma transgressão. Penso que a gente começa se fortalecendo através do conhecimento e, sobretudo, na luta mesmo, juntando força com nossos afetos e pessoas que nos acolhem. Ademais, há dispositivos atualmente que garantem a integridade física e psíquica da mulher que sofre assédio/violência. É fácil também achar que não há motivos para temer. Infelizmente, na atual conjuntura política do Brasil, há sim o que temer. Criar coragem e denunciar é o primeiro passo. Entendo que quase sempre isso não é possível. Mas, seguimos. Precisamos nos unir!
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Fotos: Janaina Leocádio